Contra as Heresias (Livro III, Capítulo 3)
Refutação dos hereges, a partir do fato de que, nas diversas Igrejas, manteve-se uma sucessão perpétua de bispos.
- Está, portanto, ao alcance de todos, em toda Igreja, para aqueles que desejam ver a verdade, contemplar claramente a tradição dos apóstolos manifestada em todo o mundo; e estamos em posição de enumerar aqueles que foram instituídos bispos nas Igrejas pelos apóstolos, e [demonstrar] a sucessão desses homens até os nossos tempos; homens que nem ensinaram nem conheceram coisa alguma semelhante ao que estes [hereges] deliravam. Pois, se os apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos, que costumavam transmitir aos perfeitos separadamente e em segredo dos demais, teriam confiado sobretudo àqueles a quem também estavam entregando as próprias Igrejas. Pois desejavam que esses homens fossem muito perfeitos e irrepreensíveis em todas as coisas, aos quais também estavam deixando como sucessores, transmitindo-lhes o seu próprio lugar de governo; homens que, se desempenhassem suas funções honestamente, seriam uma grande bênção [para a Igreja], mas, se viessem a cair, a mais terrível calamidade.
- Como, porém, seria muito trabalhoso, em um volume como este, enumerar as sucessões de todas as Igrejas, confundimos todos aqueles que, de qualquer maneira, seja por perverso contentamento próprio, por vanglória ou por cegueira e opinião perversa, se reúnem em assembleias não autorizadas; [fazemo-lo, digo], indicando aquela tradição derivada dos apóstolos, da Igreja grandíssima, antiquíssima e universalmente conhecida, fundada e organizada em Roma pelos dois apóstolos gloriosíssimos, Pedro e Paulo; bem como [apontando] a fé pregada aos homens, que chegou até o nosso tempo por meio da sucessão dos bispos. Pois é de necessidade que toda Igreja concorde com esta Igreja, por causa da sua autoridade preeminente [potiorem principalitatem].
- Os bem-aventurados apóstolos, tendo então fundado e edificado a Igreja, confiaram a Lino o ofício do episcopado. Deste Lino faz menção Paulo nas Epístolas a Timóteo. A ele sucedeu Anacleto; e depois dele, em terceiro lugar a partir dos apóstolos, Clemente foi designado ao bispado. Este homem, como tinha visto os bem-aventurados apóstolos e havia convivido com eles, podia-se dizer que ainda tinha a pregação dos apóstolos ressoando [em seus ouvidos], e suas tradições diante de seus olhos. Nem estava ele só [nisso], pois muitos ainda restavam que haviam recebido instruções dos apóstolos. No tempo deste Clemente, tendo ocorrido não pequena dissensão entre os irmãos em Corinto, a Igreja de Roma enviou uma carta poderosíssima aos Coríntios, exortando-os à paz, renovando sua fé e declarando a tradição que havia recebido recentemente dos apóstolos, proclamando o único Deus, onipotente, Criador do céu e da terra, Criador do homem, que trouxe o dilúvio e chamou Abraão, que conduziu o povo da terra do Egito, falou com Moisés, promulgou a lei, enviou os profetas e preparou o fogo para o diabo e seus anjos. Deste documento, todo aquele que quiser pode aprender que Ele, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, foi pregado pelas Igrejas, e pode também compreender a tradição apostólica da Igreja, visto que esta Epístola é mais antiga do que estes homens que agora propagam falsidades e inventam a existência de outro deus além do Criador e Autor de todas as coisas existentes. A este Clemente sucedeu Evaristo. Alexandre sucedeu Evaristo; depois, em sexto lugar a partir dos apóstolos, foi designado Sisto; após ele, Telésforo, que foi gloriosamente martirizado; depois Higino; após ele, Pio; e depois dele, Aniceto. Tendo Soter sucedido a Aniceto, Eleutério agora, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos, detém a herança do episcopado. Nesta ordem e por esta sucessão, a tradição eclesiástica dos apóstolos e a pregação da verdade chegaram até nós. E esta é a prova mais abundante de que há uma única e mesma fé vivificante, a qual tem sido preservada na Igreja desde os apóstolos até agora, e transmitida em verdade.
- Mas Policarpo não apenas foi instruído pelos apóstolos e conversou com muitos que haviam visto Cristo, como também foi, pelos apóstolos na Ásia, constituído bispo da Igreja em Esmirna — a quem eu mesmo vi em minha juventude, pois permaneceu [na terra] por muito tempo e, sendo já muito idoso, padeceu o martírio de modo glorioso e nobilíssimo, partindo desta vida, tendo sempre ensinado aquilo que aprendera dos apóstolos, e que a Igreja transmitiu, e que unicamente é a verdade. A estas coisas todas as Igrejas da Ásia testemunham, assim como também os homens que sucederam a Policarpo até o tempo presente — homem de muito maior autoridade e testemunha mais firme da verdade do que Valentim, Marcião e o restante dos hereges. Foi ele quem, vindo a Roma no tempo de Aniceto, fez com que muitos se afastassem dos hereges acima mencionados e se unissem à Igreja de Deus, proclamando que recebera esta única e exclusiva verdade dos apóstolos — a saber, aquela que é transmitida pela Igreja. Há também os que ouviram dele que João, discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e percebendo que Cerinto estava dentro, saiu correndo do balneário sem se banhar, exclamando: “Fujamos, para que até mesmo o balneário não desabe, pois Cerinto, o inimigo da verdade, está dentro.” E o próprio Policarpo respondeu a Marcião, que certa vez lhe encontrou e disse: “Tu me conheces?” — “Conheço-te, o primogênito de Satanás.” Tal era o horror que os apóstolos e seus discípulos tinham até mesmo de manter comunicação verbal com qualquer corruptor da verdade; como também diz Paulo: “O homem herege, depois da primeira e segunda admoestação, evita-o, sabendo que tal pessoa está pervertida, e peca, estando já condenado por si mesmo” (Tito 3:10). Há também uma Epístola muito vigorosa de Policarpo escrita aos Filipenses, da qual todos os que quiserem, e que se preocupam com a própria salvação, podem aprender o caráter de sua fé e a pregação da verdade. Além disso, a Igreja em Éfeso, fundada por Paulo e tendo João permanecido entre eles constantemente até os tempos de Trajano, é testemunha verdadeira da tradição dos apóstolos.
Quem foi Ireneu de Lyon
Ireneu de Lyon (c. 130–202) foi um bispo, teólogo e escritor cristão do século II, nascido provavelmente em Esmirna, na Ásia Menor. Ainda jovem, foi discípulo de Policarpo, que por sua vez conheceu pessoalmente o apóstolo João — o que o coloca a apenas duas gerações de distância dos apóstolos.
Durante a perseguição em Lyon, ele foi enviado a Roma com uma carta da comunidade local. Na sua ausência, o bispo Pothinus foi martirizado, e Ireneu foi eleito para sucedê-lo como bispo de Lugduno (atual Lyon) por volta de 178 d.C.
Ireneu é considerado um dos grandes Pais da Igreja. Sua obra ajudou a estabelecer a teologia cristã sistemática e a defender a unidade eclesial. Em 2022, o Papa Francisco o declarou oficialmente Doutor da Igreja, com o título de Doctor Unitatis (Doutor da Unidade).