Das Qualia à Evidência de Deus
A afirmação de que a qualia — as experiências íntimas e imediatas do sentir e do conhecer — é evidência da existência da consciência conduz-nos, por via reta e rigorosa, a uma conclusão metafísica e teológica de grande alcance. Não se trata aqui de um mero sofisma, mas de um encadeamento lógico conforme os princípios clássicos da metafísica: todo ato supõe uma potência, e ninguém dá o que não tem (nemo dat quod non habet). Tomemos esses princípios, expliquemo-los com clareza e sigamos seu desenvolvimento até a consequente necessidade de uma Consciência Primeira.
Primeiro: o que são ato e potência? Na linguagem clássica, a potência é a disponibilidade, a capacidade de ser atualizado; o ato é a atualização concreta dessa capacidade. Uma semente contém em potência o carvalho; o aluno contém em potência o saber que pode vir a ter; o professor, em ato, comunica aquilo que já possui em si. Nada do que é efetivamente (ato) pode ser produzido a partir do nada de potência: a atualização só pode realizar o que já de algum modo estava ordenado a ser. Esse é um principio ontológico que descreve a estrutura do ser e do vir-a-ser.
Segundo: o que são as qualia? São as experiências imediatas e subjetivas que sentimos: o vermelho que vemos, a dor que sentimos, o sabor do mel na boca. Essas realidades são conhecidas somente por quem as vivencia e não podem ser explicadas completamente apenas por mera descrição física. Podemos medir comprimentos de onda, mapear correntes elétricas, identificar correlações neurofisiológicas; nada, contudo, desses dados empíricos encerra o que é a própria experiência, a vivência qualitativa que é o cerne da qualia. Assim, as qualia apontam para algo que é intrinsecamente consciente: não são apenas propriedades da matéria, mas atos de consciência vividos de forma direta.
Terceiro: a matéria, enquanto matéria, possui potências materiais — aptidões para receber forma, extensão, movimento; possui causalidades eficientes e instrumentais no mundo físico. Mas a capacidade específica do conhecer subjetivo, do experimentar qualia, não é uma potência evidentemente incluída na mera matéria bruta; ela é de outra ordem ontológica. Portanto, para que qualia existam em criaturas materiais é preciso que, de algum modo, haja nelas uma potência ordenada ao ato consciente. Afirmar que a matéria gera qualia por si só é como dizer que algo surge do nada, sem qualquer capacidade prévia para isso — uma contradição com o princípio metafísico do ato e da potência.
Quarto: se não é razoável supor que a matéria cega tenha, por si, a potência suficiente para originar a consciência qualitativa, resta-nos considerar as alternativas racionais. Ou a potência para a consciência já estava, de modo análogo ao que a semente traz em potência o carvalho — o que exige uma origem que transcenda a mera matéria — ou adotamos uma hipótese de mera mágica metafísica que contradiz princípios racionais elementares. A solução clássica, coerente com a razão e com a experiência das qualia, é a existência de uma Consciência Primeira: um Ato sem potência, uma Inteligência que é consciência em ato pleno.
Quinto: essa Consciência Primeira, que não carece de atualização porque é ato puro, é aquilo que a tradição cristã identifica com Deus. Não se trata de uma dedução empírica arbitrária, mas de um raciocínio metafísico: as qualia denunciam a presença real do espírito; o espírito não pode proceder ultima e plenamente da matéria cega; portanto há uma origem que é espírito em ato — Ato Puro, causa primeira e fundamento do ser e do conhecer. “No princípio era o Verbo; o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” — esta declaração evoca, em linguagem de fé, a mesma razão que a filosofia discerne.
Conclusão: as qualia emergem como um sinal que transcende qualquer explicação puramente materialista. Elas são testemunho imediato de que há em nós um princípio consciente que não se esgota em extensões e massas. Seguindo o princípio aristotélico-tomista do ato e da potência, essa presença do espírito aponta para uma Consciência Primeira que é origem e modelo do conhecer. Assim, pela via da razão e pela luz da experiência, a consciência humana indica, sem subterfúgios, a participação em algo que é, em si mesmo, Espírito e Ato puro.