Quem controla a linguagem, controla as ideias

Filosofia Oct 28, 2025

Introdução

A linguagem não é só um instrumento de comunicação; ela é a condição fundamental do pensamento e da compreensão do mundo. Há séculos, os pensadores têm buscado compreender como o ser humano organiza sua experiência e a expressa de maneira compreensível. Um modelo essencial para essa reflexão é a tríade semiótica:

ResSignificatioSignum
Coisa – Conceito – Palavra

Essa tríade representa a interação entre a realidade, o conceito mental que dela se forma e o símbolo utilizado para compartilhá-lo. O presente ensaio explora essa relação e as implicações do domínio ou da carência da linguagem para a autonomia cognitiva.

O Processo Semiótico

O processo semiótico ideal funciona da seguinte forma:

  1. Res: Primeiro existe a coisa em si, o objeto da experiência, aquilo que se percebe no mundo.
  2. Significatio: A inteligência abstrai o sentido da coisa e forma o conceito mental, a inteligibilidade da coisa.
  3. Signum: A linguagem expressa esse conceito para outras pessoas, por meio de signos, palavras ou símbolos.

Neste fluxo, o Significatio ocupa posição central: é o pensamento em si, a ponte entre a realidade e sua expressão. Sem ele, o Signum torna-se vazio; sem o Signum, o Significatio permanece inacessível aos outros. Assim, a linguagem é a condição para que o pensamento se torne comunicável, compartilhado e verificável.

Essa relação funciona bem quando a pessoa percebe a realidade, compreende inteligivelmente o que percebe e consegue expressar com clareza. Desta forma, ela domina o que vê, o que pensa e o que diz.

Rupturas e suas Consequências

Quando o domínio da linguagem é insuficiente, duas rupturas podem ocorrer:

Ruptura entre Res e Significatio:
A percepção da realidade existe, mas não se forma um conceito claro. O sujeito percebe algo, mas não o organiza mentalmente. É como se dissesse: “Eu sinto algo, mas não sei o que é.”
Neste caso, o pensamento ainda não nasceu ou nasceu incompleto, e a Significatio não cumpre sua função de mediação entre o real e a expressão.

Ruptura entre Significatio e Signum:
O conceito mental existe, mas não encontra expressão linguística adequada. O pensamento fica encapsulado, aprisionado na mente: “Eu sei na minha cabeça, mas não consigo explicar.”
A Significatio não se exterioriza, impedindo a comunicação e o compartilhamento da compreensão.

Heteronomia Cognitiva

Quando as rupturas persistem, o sujeito torna-se dependente de outros para nomear, organizar e interpretar a realidade. Essa condição é conhecida como heteronomia cognitiva.

Enquanto a autonomia cognitiva permite que cada indivíduo perceba, conceitue e comunique de forma independente, a heteronomia faz do sujeito um receptor passivo, vulnerável à imposição de conceitos e interpretações alheias. Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, portanto, quem controla o vocabulário, controla o pensamento.

Um exemplo literário marcante dessa manipulação da linguagem é encontrado em 1984. Na obra, George Orwell mostra como a manipulação da linguagem pode torná-la uma ferramenta de controle social:

Com a Novilíngua, o Partido distorce o significado das palavras para restringir a capacidade de formar conceitos claros a partir da realidade. A frase “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” exemplifica isso: ao equiparar opostos, temos o duplipensar (doublethink), que força a mente a aceitar contradições sem questionar.
O Partido confunde a percepção da realidade (Res), impedindo que as pessoas formem uma Significatio coerente. Por exemplo, se “guerra” é sinônimo de “paz”, a mente perde a capacidade de distinguir conflito de harmonia, limitando o pensamento.

Há o extremo empobrecimento do vocabulário e simplificação da linguagem. Um exemplo é a palavra “bom” (good) sendo reduzida a formas como ungood ou doubleplusgood, que limitam a expressão de graduações ou críticas. Assim, se elimina nuances e palavras que permitam expressar ideias complexas.

Os cidadãos de 1984 não conseguem questionar o regime porque lhes faltam as palavras — e, consequentemente, os conceitos — para articular dissidência.

Isto posto, podemos concluir que quem não domina sua linguagem, entrega parte de seu mundo e de seu pensamento ao controle externo e torna-se vítima de dominação.

O Papel do Signum

O som vocal que não possui significação não pode ser chamado de palavra; por isso, o som vocal exterior é chamado de “palavra” pelo fato de que significa o conceito interior da mente.

O Signum não é uma transmissão perfeita, exata e espelhada do conceito; é uma cápsula parcial que permite o compartilhamento de um conteúdo mental muito mais rico. Ele simplifica a Significatio para torná-la praticamente comunicável.

Seria impraticável comunicar a todo momento que eu quiser fazer referência à casa, todos os significados que esta coisa tem para mim. A linguagem teria que durar tanto quanto o próprio pensamento.
Portanto, o Signum só funciona porque é parcial.

Sem Signum, não há ponte entre mentes distintas.
Sem Significatio, o Signum é vazio.
Sem Res, tudo vira fantasia.

"Vox significat conceptum intellectus, et conceptus significat rem."
"A palavra significa o conceito, e o conceito significa a coisa."

Conclusão

A falha em qualquer elo da tríade semiótica compromete a autonomia cognitiva, tornando o sujeito dependente de interpretações alheias.
Portanto, a linguagem é instrumento de liberdade cognitiva: quanto mais precisa e rica, mais o indivíduo se torna capaz de pensar, julgar e comunicar de forma autônoma.
Dominar a linguagem, portanto, não é apenas um exercício acadêmico ou literário: é dominar a própria capacidade de compreender, julgar e interagir com o mundo.

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